quinta-feira, 27 de setembro de 2012

HOMENAGEM AO POETA

Por Liliane Pelegrini


Ontem, quarta-feira, a cultura perdeu Affonso Ávila, o grande poeta, ensaísta e estudioso do barroco. Além da obra incontestável e rara, Affonso, sempre muito solícito, agradável e generoso, proporcionou ótimas entrevistas e fotos a qualquer profissional do jornalismo que o procurou. No ano 2000, coube a Élcio Paraíso, então repórter fotográfico de O Tempo, clicá-lo para a matéria de capa sobre o lançamento do livro “Catas de Aluvião – Do Pensar e do Ser em Minas” (foto ao lado). Eu também o entrevistei um par de vezes, assim como entrevistei sua esposa e parceira na vida na literatura, Laís Corrêa de Araújo, e seu filho, Carlos Ávila. Uma família literária de dar gosto. 

Nesta minha segunda passagem por O Tempo, coube ontem a mim escrever a matéria sobre a morte do Affonso, publicada hoje na capa do caderno Magazine. Triste pela ocasião, mas honrada em poder assinar a homenagem do jornal ao homem que foi sempre um grande lutador pelas letras, pelo entendimento e preservação do patrimônio histórico. 

Reproduzo, então, aqui no blog da Bendita a reportagem publicada hoje, também como uma homenagem ao Affonso, que foi sempre muito gentil e disposto tanto nas entrevistas comigo quanto nas sessões de foto com o Élcio Paraíso.


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LUTO

MORRE AFFONSO ÁVILA

Um dos maiores poetas brasileiros teve um infarto ontem de manhã em sua casa e não resistiu

           Liliane Pelegrini
           Especial para O TEMPO
 
        Faz pouco mais de um ano e meio que nas páginas deste Magazine, o poeta e cronista Sebastião Nunes escreveu em seu espaço: “para cada Affonso Ávila, existem centenas de poetas medíocres”. A assertiva veio com a propriedade de quem, lá nos anos 1970, foi como que apadrinhado intelectualmente por Affonso. O próprio Affonso, em entrevista a este mesmo caderno no ano 2000, comentou: “Quando Drummond morreu, perguntaram ao João Cabral se ele passava a ser o maior poeta brasileiro. Ele disse que não sabia, que havia gente que achava que era o Ferreira Gullar, outros, o Affonso Ávila...”
        Aos 84 anos, Affonso Ávila produzia com vigor, ignorando o fato de já ter sido publicada uma edição com sua obra poética completa, há um par de anos. Passava por um tratamento contra uma enfisema pulmonar, mas isso também não o desanimava. Foi apenas o coração que o parou, em um infarto ontem (quarta) pela manhã, quando estava em sua casa no bairro Santo Antônio, a mesma casa que foi ponto de encontro e aprendizado para diversas gerações não apenas de escritores como de artistas dos mais diversos ramos e onde ele e a esposa, a também escritora Laís Corrêa Araújo, morta em 2006, também viram os cinco filhos e oito netos crescerem. 
        Affonso era um homem raro. Fluía com desenvoltura ímpar tanto pela criação poética quanto pelos ensaios e estudos mais teóricos. Também foi fundador do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas gerais (Iepha). E ainda que tenha construído uma obra incontestável, agraciada, a propósito, em agosto do ano passado pelo Prêmio Governo Minas Gerais de Literatura, a primeira imagem que vem à mente de quem conviveu com ele é do homem generoso que não se recusava a partilhar conhecimento. “Affonso Ávila foi, principalmente, o guru de uma geração inteira de escritores mineiros. Essa nossa turma que se formava nos anos 1970 ia muito na casa dele e era muito grande o aprendizado que tínhamos com ele e a Laís. Affonso não era um homem de ficar para lá e para cá, rodando em viagens, mas o mundo todo passava pela casa dele”, lembra Sebastião Nunes. “Ele não recebia qualquer um. Detestava mediocridade. Era um privilégio fazer parte do universo dele”, acrescenta Tião.
        Juntos, fizeram dois livros – “Cantaria Barroca” e “Masturbações” –, Affonso escrevendo e Tião, em sua outra vertente, cuidando da parte visual. Desse e de todas as outras vivências, para o cronista o que ficou foi algo muito maior que a obra de tamanho gigantesco. “O Affonso passava a importância de fazer, em primeiro lugar, um trabalho pessoal. Marcou muita gente pelo rigor com que trabalhava, pelo apreço pela alta qualidade e pela originalidade. Não se preocupava em cair na moda. Não era de quantidade e, sim, de qualidade”, afirma Tião.
DNA PARA AS LETRAS
        O legado para a cultura de Minas, do Brasil e do mundo, tanto com a poesia quanto pelo profundo trabalho que realizou para entender o barroco em suas múltiplas facetas é de valor inestimável, para o também poeta Carlos Ávila. Mas há, no caso dele, uma herança muito mais especial: ele é um dos frutos da união de Affonso e Laís e dos pais recebeu não apenas a carga genética que se espera como também o dom da escrita. “Além do companheirismo intelectual, houve o companheirismo afetivo que gerou cinco filhos e oito netos. E eu tive a sorte de ser fruto desse encontro”, afirma Carlos.
        Afora a perda do pai, ele lamenta a perda de um homem que, mesmo tendo realizado tudo que realizou, se mantinha alerta e produtivo. “Ele teve uma atuação sempre marcada pela renovação da linguagem. Participou dos movimentos de vanguarda, colocou sua poesia em função da renovação e também de uma postura crítica, com conteúdo político-social. A obra dele abrange um leque muito grande de temas”, avalia Carlos, em meio a uma dezena de burocracias que perturbam ainda mais o momento já pautado pela tristeza.
        O enterro está marcado para hoje, às 13h, no cemitério Parque da Colina, e é quando a família e amigos vão prestar homenagens. “Ele faz parte de uma geração com uma visão humanista ímpar e que está se extinguindo”, lamenta Carlos.



“ESCREVER FOI A ÚNICA QUALIFICAÇÃO QUE ALCANCEI"


        Affonso Ávila esteve nas rodas das conversas que originaram uma das publicações literárias mais importantes do país, o “Suplemento Literário de Minas Gerais”. Sua esposa, Laís Corrêa Araújo, era integrante da comissão inicial que tornou possível a concretização do projeto. Com Laís, a propósito, formou uma dupla profícua, que tinha prazer em promover diálogos que pudessem ampliar o saber artístico.
        Antes, foi o correspondente mais jovem de “O Estado de S. Paulo”, em seu suplemento literário. Décio de Almeida Prado, seu chefe naquela época, revelou em carta que anos mais tarde veio a público que era de se perceber, de cara, o talento de Affonso. A literatura começou muito cedo para ele. “Desde a adolescência colegial dos jornaizinhos feitos à mão, do jornalzinho impresso de bairro, no imaginar ingênuo mas sempre audacioso de um múltiplo e multiplicador de textos titubeantes”, depõe no prefácio de “Catas de Aluvião”, lançado em 2000 e tema de uma das inúmeras capas que o Magazine dedicou à obra do escritor. Na ocasião, ele comentou: “Escrever foi a única qualificação que alcancei”, numa modéstia desnecessária para alguém que produziu tanto como ele.
        Em sua obra, há de se destacar a revista “Barroco”, que reuniu artigos, pesquisas e investigações sobre o período histórico e artístico. “Ele lançou um novo olhar sobre o período”, diz o jornalista João Barile, diretor de articulação e promoção literária do “Suplemento Literário” e organizador da comissão do Prêmio Governador de Minas Gerais”, que deu a Affonso, no ano passado, prêmio pelo conjunto da obra. “Ele estava muito feliz com o reconhecimento”, fala Barile.


* Reportagem originalmente publicada 
no dia 27 de setembro de 2012, no 
caderno Magazine de O Tempo.

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